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Justiça tributária é bom ou ruim para a sociedade?

Por Marcel Barros e Patrícia Cunegundes

Recente matéria publicada em um representante da mídia tradicional apontava que a decisão de aliviar a carga tributária de quem recebe até R$5 mil por mês seria prejudicial ao País e que a diminuição do número de contribuintes seria um sinal de falta de desenvolvimento.

Nada mais falso e tendencioso. A falácia em olhar apenas para a quantidade de declarantes desvia o foco da questão real: o país não precisa tributar mais trabalhadores de baixa renda; precisa deixar de favorecer e tratar os muito ricos como exceção permanente. A ampliação da faixa de isenção não nos afasta de país nenhum. O que nos distancia é a desigualdade que permanece intocada no topo.

A matéria “Com isenção do IR até R$ 5 mil, Brasil reduz número de contribuintes e se distancia de países desenvolvidos”, se soma a um conjunto de conteúdos publicados por veículos de comunicação comerciais que vêm reforçando o coro contra a ampliação da faixa de isenção do Imposto de Renda Pessoa Física e mostra a realidade daqueles que defendem interesses do capital e dos rentistas, seus financiadores.

A narrativa se repete: consultorias internacionais são apresentadas como fontes neutras e incontestáveis, e seus números são usados para sustentar a ideia de que reduzir o número de contribuintes é sinal de atraso. O que não aparece nessas análises é justamente o ponto que deveria vir antes de qualquer comparação: a profunda desigualdade de renda brasileira e o fato de que é a classe trabalhadora que sustenta praticamente toda a carga tributária do país.

A própria matéria admite a “elevada concentração de renda no topo da distribuição” e o impacto disso sobre o número de declarantes do IRPF, afirmando que pequenas mudanças nas faixas alteram de forma brusca a quantidade de pessoas obrigadas a declarar. Essa observação, que aparece quase como um detalhe técnico, desmonta a premissa central do texto: o Brasil não tem menos declarantes porque está “atrás” dos países desenvolvidos, mas porque na terra de pindorama a remuneração dos trabalhadores é muito menor quando comparada com aqueles países.

A comparação é apresentada como se fosse natural e direta, quando na realidade ignora diferenças estruturais decisivas. No Brasil, a renda anual média está em torno de US$7.180 (R$ 39.000); nos países usados como parâmetro — Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha — a renda média anual e a remuneração por hora são múltiplas da realidade brasileira. Nos EUA, o ganho médio anual é de US$ 83 mil (R$451.000); na Alemanha, US$ 54 mil (R$294.000); no Reino Unido, US$ 57 mil (R$310.000).

É evidente que, em países onde trabalhadores ganham mais, mais pessoas ultrapassam a faixa de isenção e entram na base de contribuintes. Não porque o sistema seja “melhor”, mas porque a distribuição de renda é menos desigual e o nível de pobreza é muito menor. A própria estrutura tributária desses países ajuda a esclarecer essa diferença. A Alemanha isenta quem ganha até €11.604 por ano (R$73.200). A partir daí, aplica alíquotas progressivas de 14% a 42%, chegando a 45% para rendas acima de €277.825 (R$1.752.000). Ou seja: ninguém que ganha pouco paga imposto, e quem ganha muito paga proporcionalmente mais, diferentemente do Brasil, onde lucros e dividendos seguem praticamente intocados. Agora quem ganha acima de R$600.000 pagará 10%, muito abaixo do que se paga na Alemanha, por exemplo.

Apesar disso, a matéria trata a redução do número de declarantes como se fosse um indicador em si, sem contextualizar que, nesses países, o peso do financiamento do Estado não recai sobre os trabalhadores de baixa renda. Recaem sobre os muito ricos, que são proporcionalmente tributados. Aqui, ao contrário, quando se tenta aliviar quem ganha até R$ 5 mil, argumenta-se que isso “afasta o Brasil do mundo desenvolvido”. Trata-se de um raciocínio invertido, pois é justamente porque o Brasil está distante desse padrão de distribuição de renda que a isenção alcança tanta gente. O texto também se apoia no argumento de consultorias internacionais para afirmar que o país ficaria mais “desalinhado” dos países desenvolvidos, mas não questiona as premissas por trás da comparação. Mais do que isso, não se pergunta por que quase toda a força de trabalho alemã, britânica e norte-americana contribui com o IR. Não é porque o sistema exige universalidade. É porque essas sociedades têm menos pobreza, mais formalização e, sobretudo, mais renda distribuída na base.

Aqui, a ampliação da isenção não cria uma distorção; apenas expõe a que já existe. Quando os salários são baixos e a riqueza é altamente concentrada, qualquer ajuste faz milhões de pessoas cruzarem a linha entre ser contribuinte e ficar isento. Isso não revela um erro da política tributária recente, mas sim a profundidade do problema estrutural brasileiro.

A matéria até menciona que é necessário tributar lucros e dividendos com alíquotas mais altas e reduzir impostos que pesam sobre consumo, medidas que de fato aproximariam o Brasil dos países desenvolvidos. Mas, contraditoriamente, tenta transformar a discussão sobre o número de declarantes em uma medida simbólica de “modernidade”, como se o avanço estivesse em expandir a base de contribuintes entre pessoas de baixa e média renda. O Brasil não vai se tornar mais justo se mais trabalhadores pagarem Imposto de Renda. Vai se tornar mais justo quando quem de fato concentra riqueza passar a contribuir mais, como acontece nos países que a matéria usa como referência.

Marcel Barros é vice-presidente de Relações Funcionais da Associação Nacional dos Funcionários do Banco do Brasil (Anabb) e presidente da Associação Nacional dos Participantes de Previdência Complementar e Saúde de Autogestão (Anapar). Foi diretor de Seguridade da Previ.

Patrícia Cunegundes é jornalista especializada em Economia e Previdência Complementar.